sexta-feira, 26 de março de 2010

A hora e vez das Histórias em Quadrinhos

  
A hora e vez das Histórias em Quadrinhos

HQs começam a fugir dos estereótipos e atingem novos tipos de leitores


DOUGLAS FERNANDES
1810quadrinhos
Apesar de obstáculos, a produção de histórias em quadrinhos no Brasi está começando a amadurecer
Comics, gibis, histórias em quadrinhos ou arte sequencial. Seja qual for a definição, a “9ª arte” é motivo de muito debate sobre sua credibilidade como meio de comunicação. A falta de disciplinas acadêmicas sobre o assunto, nas instituições de ensino em comunicação social ou mesmo no ensino médio e fundamental, gera um déficit de conhecimento difícil de ser compensado.

Apesar de obstáculos, a produção de histórias em quadrinhos no Brasil, principalmente a vertente independente, está começando a amadurecer, e o mercado interno finalmente desperta para o potencial desta mídia. Faça um teste: em uma roda de amigos, seja na mesa de bar ou em um aniversário, fale algo sobre histórias em quadrinhos.

Com certeza, o resultado que irá encontrar, em sua maioria, é a ligação de que isso “é coisa de criança” ou “gente com super-poderes que usa a cueca sobre a calça”. Realmente, o consumo de revistas no Brasil que se enquadrem nessas duas categorias (leia Turma da Mônica e Marvel/DC Comics) é muito grande, mas é de longe o mais importante.

Dificilmente, você encontrará alguém que comente sobre o trabalho de quadrinho jornalístico desenvolvido pelo italiano Joe Sacco, que esteve na Palestina e em Gorazde para relatar as guerras desses lugares.

A esse, você pode somar outros incontáveis trabalhos, casos da obra do fotógrafo Didier Lefèvre, dos relatos autobiográficos de Marjane Satrapi, Art Spielgman ou Graig Thompson e as cenas do cotidiano feitas pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá.
Todos esses trabalhos existem em língua portuguesa e podem ser facilmente encontrados em livrarias, bibliotecas ou bancas de revistas.

No Brasil, por um lado há aqueles que desconhecem o universo dos quadrinhos e, por outro, os que só consomem o básico, mantendo o estigma do produto infanto-juvenil masculino de super-heróis.

Mas essa realidade vem se modificando. Desde a década de 1980, trabalhos como “Watchmen”, de Alan Moore, ou “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, vêm mudando a maneira de ver os quadrinhos.

Com Will Eisner, que o conceito de quadrinhos adquire o status de produção literária. Foi ele quem cunhou o termo graphic novel, que nada mais é do que livro em quadrinhos.  E Eisner foi além, escrevendo livros estudando a linguagem específica do que ele denomina arte sequencial.

Ele gostava da vida cotidiana das pessoas e foi isso o que produziu em toda sua vida. Seu trabalho foi tão importante que uma premiação dos melhores quadrinhos do ano foi batizada com seu nome, o Eisner Awards, considerado o Oscar dos Quadrinhos.
Na corrente do mercado, entre os dias seis e 12 deste mês, Belo Horizonte foi a capital internacional dos quadrinhos, sediando o 6º Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), realizado no Palácio das Artes.

O programa, maior da América Latina, reuniu mais de 70 mil pessoas durante os seis dias, conforme registra o diretor geral do FIQ e fã de quadrinhos Afonso Andrade. “Essa edição apresenta um balanço excelente, tanto pela participação dos artistas de renome quanto pela população que veio prestigiar o evento. Batemos nosso recorde de público, com certeza”, afiança Andrade.

“O mercado interno de HQs está sofrendo mudanças: o Governo Federal está investindo em quadrinhos como meio didático, livrarias disponibilizam lançamentos direcionados para um público específico e grandes editoras estão investindo nesse mercado”.  “Este é um momento de novos rumos, quando novas estradas estão sendo abertas”, festeja.

O público significativo, as palestras e bate-papos lotados durante todo o evento e os lançamentos que aconteceram durante o FIQ denotam, de maneira visível, como o mercado brasileiro está se modificando para abarcar tanto a produção nacional e também importar a produção internacional.

Hoje é possível dizer que existe um público maduro que é capaz de ler quadrinhos sem preconceitos. E é nisso que as grandes editoras estão apostando. Uma das maiores editoras do Brasil, a Companhia das Letras tem um selo específico só para a publicação de HQs: “Quadrinhos na Cia”. Quatro obras internacionais aclamadas pela crítica foram lançadas em solo brasileiro: “O Umbigo sem Fundo”, de Dash Shaw; “O Chinês Americano”, de Gene Luen Yang; a coletânea “Nova York”, de Eisner, e “Retalhos”, de Graig Thompson, que esteve presente ao FIQ, arrebatando legião de fãs. “Jubiabá”, obra de Jorge Amado, também foi adaptada pela editora.

Outras editoras investem pesado e estão lançando produções brasileiras. A Agir oferece a adaptação de “O Alienista” e a publicação da série “10 Pãezinhos”, de autoria de Moon e Bá.

Mas esse investimento ainda é pequeno, e só publicar não basta. É preciso mostrar o que está sendo publicado e formar um público leitor. Eis o calcanhar de Aquiles das editoras nacionais.

O jornalista Sidney Gusman, formado pela Universidade Metodista de São Bernardo do Campo, é um dos grandes especialistas em quadrinhos no Brasil, sendo sete vezes vencedor do Troféu HQ Mix (de 2000 a 2006), maior premiação de quadrinhos no País. Atualmente, é editor-chefe do site Universo HQ e responsável também pela área de Planejamento Editorial da Maurício de Sousa Produções. Para Gusman, é preciso que as editoras “tirem suas bundas das cadeiras e façam acontecer”, critica.

“Não houve um aumento na venda de quadrinhos. Na verdade, o que está acontecendo é um pulverização de público. Este mês, por exemplo, as editoras anunciaram 130 lançamentos para todos os gostos. Está acontecendo um crescimento horizontal, com o surgimento de um público segmentado para cada tipo de quadrinho”, analisa.

Nesse cenário, quem ganha, na opinião de Gusman, são os independentes. “Publicando e distribuindo fora do circuito convencional, a criação dos ‘coletivos’ leva à força da união e possibilita que os trabalhos sejam mais conhecidos”.
Apesar de tantos títulos sendo publicados, o descaso e a má vontade são os vilões das grandes editoras. “Faço uma crítica que já fiz em outras edições (se referindo ao FIQ): as grandes editoras ignoram esse tipo de festival de maneira absurda e ridícula.
É uma vergonha o que as editoras fazem. Em qualquer lugar do planeta, esses eventos servem como ponto de encontro para lançamentos de peso. Aqui, as editoras não aparecem, os editores não vêm, com raras exceções como o Cláudio Martini, da Zarabatana e, o André Conti, do Quadrinhos na Cia. Das outras, simplesmente, não há ninguém”.

Sidney Gusman acredita que o problema seja o foco dado pelas editoras, que buscam somente as vendas, ignorando o trabalho para a formação de leitores.

O jornalista, publicitário, mestre em Ciências da Comunicação, professor universitário e fã de quadrinhos Érico Assis tem a mesma opinião de Gusman. Há mais ou menos dez anos trabalhando para o site Omelete, o “cozinheiro” critica a falta de presença das editoras. “Falta a iniciativa das grandes, mas, apesar dessa ausência, o mercado brasileiro está acontecendo agora, e justamente essas grandes editoras estão investindo”, considera.

“Hoje é possível dizer que algumas delas fornecem um adiantamento digno para que um quadrinista brasileiro possa produzir seu trabalho”.
Assis compara a situação do mercado brasileiro de quadrinhos com o que acontece na Alemanha ou na Espanha. “Há uma expansão mundial na definição de quadrinhos como literatura de qualidade e opção como cultura pop. É como comparar uma HQ a um filme”.

O professor e quadrinista Mário Vitor Gouveia Cau, de 25 anos, produtor independente, autor dos dois volumes de “Pieces”, HQ autoral que narra experiências cotidianas da vida, diz fazer o que gosta e, apesar de tudo, não abre mão disso. “Sempre tive o apoio da minha família. Colocaram uma caneta na minha mão quando tinha dois anos de idade; não parei até hoje”, brinca ele.

“Quando comecei, queria desenhar super-heróis, mas depois desisti desse ramo. Queria algo próprio, algo meu. O quadrinho independente é a escolha perfeita para quem quer fazer e não quer esperar uma grande editora para bancar o trabalho”.
Na corrente dos que querem incrementar o interesse pelo gênero, Cau sabe o que fazer. “Ninguém vai conhecer meu trabalho se eu não mostrá-lo. Quadrinhos são uma forma de comunicação; faço quadrinhos porque quero falar com as pessoas”. 


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